brands for future #5 - Carla Purcino e a publicidade regenerativa
e mais: o viral da The North Face, aprendizados da Mattel com a Barbie, TrendWatching 2024, o projeto Vozes30 da Comunicação, o documentário Kiss the Ground
Que bom te encontrar por aqui ;)
Como funciona a brands for future?
Aqui é o espaço pra leitura calma e reflexiva.
Toda edição você encontra uma entrevista, um case, insights e algumas referências úteis - todas relacionadas ao universo do marketing, branding e sustentabilidade. E uma inspiração no final pra dar aquele respiro.
Hoje temos a querida Carla Purcino, que conheci no Linkedin, graças a um assunto muito relevante que ela tem trazido à tona: a publicidade regenerativa.
Se você nunca ouviu a expressão, na entrevista você vai descobrir um pouco mais do significado do termo, cunhado por ela, e como repensar o papel da comunicação das marcas.
Além da entrevista, hoje aqui você encontra também outras pautas que trazem reflexão sobre como comunicar nos novos tempos. Bem assim, caminhando na direção de um marketing e comunicação cada vez mais conscientes.
Vamo que dá.
A edição tá bem inspirada no tema publicidade regenerativa:
1- Entrevista com a Carla Purcino
2- Apanhado de aprendizados da entrevista
3- O viral e a ética no marketing da The North Face
4- O que a Mattel aprendeu com o marketing da Barbie
5- Trend Report 2024 da TrendWatching
6- O projeto Vozes30 da comunicação
7- O filme documentário Kiss the Ground - pra entender um pouco mais sobre regeneração
Se você perdeu as primeiras edições, olha quem já esteve por aqui:
#1 - Entrevista com David Aaker, o pai do Branding
#2- Entrevista com Estevan Sartoreli, CEO da Dengo
#3- Entrevista com Renato Winnig, Head de Branding da Natura
#4- Entrevista com Emily Ewell, fundadora e CEO da Pantys
1- A entrevista com Carla Purcino
Carla é uma profissional de comunicação com mais de 20 anos de experiência em planejamento estratégico, branding e pesquisa. Dedica-se atualmente a estudos de ESG, Regeneração, Inovação e Diversidade.
Trabalhou pra agências como Africa Creative, DPZ&T, Talent Marcel, Wunderman Thompson e NBS, além de ter passado por empresas como Red Bull, Globo (canal GNT) e Copernicus Consulting. Faz parte do quadro de professores da Miami Ad School, responsável pela disciplina de Tendências.
Teve diversos reconhecimentos na carreira com prêmios como PROMAX Awards e Effie Latam por iniciativas inovadoras, como "Encontros de Conhecimento" em parceria com o Discovery Channel e e o Effie Latam 2023 nas categorias Impacto Positivo e Reputação Corporativa com a campanha ‘Bares de Respeito’ pra Ambev, pela Africa Creative.
De quais trabalhos você mais se orgulha?
Carla: Um deles foi cuidar da conta de Petrobras, quando trabalhei na DPZ&T. Eu sou uma pessoa que gosta muito de política e era a maior empresa do país, uma empresa amada e odiada. Mas muito mais amada do que odiada (e o ódio também é um afeto). Então, é uma empresa que desperta paixão no brasileiro. Seja uma paixão positiva ou negativa.
É uma empresa que atravessa a nossa história e que estava saindo, ou tentando sair, de um dos maiores escândalos corporativos e reputacionais do mundo, que foi a Lava Jato. Pra quem gosta de problema como eu - eu não posso ver um probleminha passar na minha frente que eu já quero pegar para resolver - era um prato cheio. Meu então chefe falou pra mim: ”Se você for para lá e conseguir mudar o ponteiro desse cenário, você tem o case da sua vida”. E eu falei: “tá bom, vou lá tentar”.
Com muito empenho, muita qualidade de trabalho, muita dedicação, a gente realmente conseguiu virar o ponteiro. Obviamente teve materialidade, a companhia realmente estava fazendo muita coisa. As mudanças que eles fizeram em governança são maravilhosas. Mas a gente também deu luz, voz e visibilidade pra projetos que a própria Petrobras fazia.
A gente pegou um ponto de vista que eu acho muito interessante, que une o que de melhor a Petrobras tem com algo que o brasileiro acha que não tem, mas tem, que é o espírito científico. Porque o espírito científico nasce da curiosidade. Pra você ser um cientista, você tem que ser curioso. E todo mundo é curioso se não tiver a sua curiosidade podada.
As crianças são cientistas em potencial porque elas são muito curiosas. Elas perguntam tudo o tempo todo. Elas querem saber, elas querem experimentar. A gente conseguiu construir esse raciocínio: de que a gente carrega esse potencial da ciência. E a Petrobras leva adiante esse potencial da ciência. A gente tem aqui no Rio de Janeiro o Laboratório da América Latina, que é o CENPES, na ilha do Governador, e quase ninguém sabe disso. É um lugar maravilhoso, lindo. Tem pesquisas muito avançadas sobre combustíveis renováveis, projeto de como extrair energia de alga. Histórias emocionantes, de pessoas que moravam na Maré, na comunidade, e depois se tornaram profissionais de lá.
Fizemos também uma construção que não era mais a publicidade de 30 segundos. Fizemos muito conteúdo, fizemos um longa com a National Geographic, uma série de programas com a Discovery Channel, pela qual ganhamos um prêmio de TV (não de publicidade, o que foi muito interessante).
Cuidando dessa conta como planejadora estratégica, a minha cabeça abre de uma maneira tal, onde eu entendo que quanto mais a gente coloca fronteiras entre publicidade, relações públicas, conteúdo e entretenimento, mais a gente empobrece um processo de comunicação. E, quanto mais essas áreas todas estiverem integradas, mais rico vai ser o produto que você vai colocar na rua, mais o consumidor vai ficar atento, engajado, interessado em ver a mensagem que você tem pra passar.
O que eu acho muito feliz é que, na nossa maneira de trabalhar dentro da agência, as fronteiras entre os departamentos também estavam borradas. Pude usar a minha experiência em mídia, por exemplo. A gente estava em um período pré-eleitoral, então a gente não podia fazer propaganda de nenhuma empresa pública. Nossa campanha estava marcada para ir ao ar no primeiro dia depois desse período (que era o dia depois da eleição de 2018). E eu me lembro que, numa reunião, eu virei e falei: “esse filme precisa ir ao ar na escaleta do Jornal Nacional, porque o Brasil inteiro vai estar ligado, porque vai ser o primeiro jornal que vai dizer quem foi eleito.”
E eu me lembro que a minha colega diretora de mídia, olhou para mim e falou: “não Carla, isso é muito arriscado, a gente não pode botar Petrobras nesse lugar”. E, do outro lado, o diretor de atendimento olhou para mim e falou: “do caralho, genial, é isso que a gente precisa fazer.”
Eu estava ali olhando pra a audiência, e de fato, em dois dias de campanha, a gente extrapolou todas as métricas de KPIs que a gente tinha. Em dois dias de campanha eu já tinha todo o alcance que eu precisava. E a gente virou trending topic no Twitter, nessa noite, na primeira exibição. Ou seja, quando a gente fala sobre planejamento estratégico, não é olhar só o insight criativo, é olhar o todo. E eu estava olhando o todo, ainda que eu estivesse fazendo uma interferência sobre a distribuição daquela mensagem. Isso também é estratégia. E que bom que eu tinha uma equipe onde a gente podia realmente interagir e dialogar nesse sentido.
Ao final desse processo, a gente conseguiu o que precisava, que era levantar esse ponteiro da reputação. Recebemos elogios públicos e espontâneos de pessoas que viram um filme nosso e até nomearam suas colunas no jornal de “O Minuto do Ano”, para falar de um dos nossos filmes.
Como fazer um bom planejamento estratégico?
Carla: Pra você fazer um planejamento estratégico, tem algumas coisas básicas e sem elas não dá para caminhar.
O primeiro é entender o seu cliente/marca. Quais são os desafios de negócio? Acho que, muitas vezes, as pessoas da comunicação não olham pro negócio. E as questões de comunicação estão a serviço do negócio, sempre. Até porque marca é negócio, marca vale dinheiro. Você tem como quantificar o valor de marca. Então, não perder isso de vista, pra mim, é muito importante. Ler os relatórios: se for uma empresa pública, os balanços, o plano anual e plurianual. Para onde os acionistas estão querendo direcionar aquela companhia, no que ela quer investir, onde ela quer desinvestir, quais são os mercados? Se você não tem todo esse tipo de informação, você vai ter um tracking de marca. E se você não tem, se for uma empresa muito pequenininha, você pode rodar uma pesquisa. Tendo atenção aos critérios de pesquisa, claro (infelizmente muitos planejadores não sabem o mínimo de teoria de pesquisa e eu fico preocupada com isso, porque pode levar a números muito enganosos).
Fazendo uma linha paralela, precisa olhar para a competição. Tem que olhar quais são os serviços e produtos que podem ameaçar aquele seu serviço ou produto. E eu estou falando aqui de um cenário competitivo direto e indireto, porque se você, às vezes, olha só pra sua categoria, você fica um pouco míope.
Aí vem o terceiro pilar, que é o contexto/cultura. Se você não entende o contexto cultural onde você está inserido, você também roda. Como várias empresas que tentaram entrar no Sul e não conseguiram frutificar, porque é uma cultura muito fechada em si mesma. Eu vi isso acontecer. Marcas que não sejam regionais têm uma profunda dificuldade de entrar no Sul, porque é uma região muito bairrista. É uma região onde os hábitos e as marcas passam de pai pra filho. A Oi teve uma profunda dificuldade de entrar no mercado do Sul. Como é que você fura essa bolha? Você tem que entender muitas camadas. Tem empresas que têm uma leitura de contexto cultural maravilhosa. O Estúdio Eixo, da Kika Brandão, que é uma amiga querida, fez um trabalho lindo exemplar pra Consul no Nordeste, que é um lugar onde as mulheres têm ainda uma tradição, para além da necessidade, de roupa lavada na mão. Porque isso para elas é um valor. A roupa super branca, super limpa, que às vezes a máquina não dá esse mesmo resultado. E ela conseguiu mudar o ponteiro de negócios dele através de um entendimento profundo, humano, cultural.
E o quarto pilar, consumidor. Você entender de fato quem é que você quer atingir, conversar com essas pessoas. Então, são esses quatro pilares: cliente/marca, competição, contexto, consumidor. Esse é um ponto de partida para você fazer um planejamento estratégico.
Eu acho que hoje em dia, com toda a demanda que a gente tem dessa pauta de sustentabilidade, de ESG, eu colocaria mais um componente nessa formulinha dos quatro pilares, que é super antiga, não sou eu que estou falando isso pela primeira vez. Mas eu colocaria o componente de potencial de transformação. Quando a gente olha pra contexto cultural e quando a gente olha para o consumidor, eu acredito que dá para extrair daí o potencial transformador.
Agora, tem o pulo do gato: tudo precisa se tornar criativo. Sedutor o suficiente pra dar uma boa campanha. E aí eu acho que é quando a subjetividade do planejador encontra a objetividade. Porque essa parte toda de análise pode ser muito objetiva. Você precisa de uma parte subjetiva pra olhar esse contexto com poesia, pra olhar esse consumidor com humanidade, com ginga. E conseguir extrair disso inspiração para a equipe que vai fazer a campanha. É um equívoco achar que o planejador tem que ter um olhar extremamente objetivo e duro sobre as informações. Na verdade, ele precisa ter um olhar emocional e lírico sobre tudo aquilo que ele está observando. Ainda que seja uma poesia de humor. Mas ele precisa transformar aquilo em algo mais.
Vou dar um exemplo prático: esse ano eu fui fazer um planejamento pra Claybom. Teoricamente, é um produto muito negativo: margarina. Mas ao mesmo tempo é um produto que tem um contexto cultural maravilhoso, de afeto, de tradição, de acompanhar o consumidor há 70 e poucos anos. Uma marca super querida do brasileiro. E as pessoas usam. Das duas uma: ou eu tiro esse produto do mercado ou, à medida em que ele existe, eu procuro transformá-lo em algo o melhor possível.
E aí, ao fazer esse planejamento, eu entendi no contexto cultural que, considerando a classe social pra qual essa margarina é voltada, que é a classe BC, e até um pedacinho da D, a compradora dessa marca, que é majoritariamente uma mulher, fazia parte de um grupo que tinha ficado absolutamente prejudicado na pandemia pelo desemprego. E que tinham encontrado na culinária um jeito de gerar renda.
Ou seja, Claybom tem uma base de fãs de marca, de consumidoras, que são culinaristas e que fazem disso uma renda adicional. Então, eu coloquei um pilar de transformação, que era Claybom ser uma marca que apoiaria o empreendedorismo culinário dessas mulheres. Ao trazer essa provocação pra mesa, ela foi super bem recebida no time criativo dentro da agência e foi melhor recebida ainda dentro da BRF.
Ela se tornou a primeira marca com um propósito, digamos assim, dentro do portfólio de BRF. Qualy já tinha um compromisso com reciclagem, mas não trazia isso pra frente da comunicação. Agora começou a trazer nas propagandas, tem uma propaganda com o Carlinhos Brown batucando uma caixinha de Qualy, na qual ele explica que a cada embalagem produzida uma é reciclada.
E como liderar um bom planejamento?
Carla: Essa é mais difícil, porque não depende só de mim, depende do time que estiver comigo.
Eu me lembro que, há muitos anos atrás, eu fiz uma entrevista de emprego na qual me foi perguntada qual eu achava ser a principal e essencial qualidade de um planejador. Eu falei generosidade. Pra mim, bons planejadores são pessoas generosas ao compartilhar o conhecimento que têm sobre qualquer coisa. São pessoas que gostam de falar sobre aquilo que sabem. Não para se gabar, mas para que os outros saibam também. “Olha que bonito o que eu descobri, deixa eu te mostrar. Olha que legal o que eu aprendi hoje, deixa eu compartilhar com você”. Eu acho que essas pessoas apaixonadas por compartilhamento contínuo de saberes, de informações, de descobertas dão bons planejadores estratégicos.
Pra liderar (e não acho que seja só no planejamento, eu acho que é pra liderar, ponto) você precisa ter a sensibilidade de enxergar, como diria um antigo chefe meu, qual é o superpoder de cada pessoa do seu time. Nem todo mundo é bom em tudo do mesmo jeito. É um erro querer que as pessoas performem do mesmo jeito. Então, você precisa entender no que aquela pessoa vai ser brilhante. Dá para ela esse pedaço do trabalho, não faz uma coisa a fórceps. À medida em que você puder fazer isso (nem sempre é possível), faça. Porque aí você não gera um nível de estresse muito alto no time e as pessoas vão estar fazendo coisas que elas sabem que elas podem fazer bem. Elas vão ficar mais estimuladas e vão se sentir mais recompensadas também. De novo, não é fácil, não é sempre que é possível, mas eu acho que vale a pena pensar por aí.
Quais são as referências que você bebe pra aumentar repertório e se inspirar?
Carla: Tudo na vida é referência! E se a gente se apega a um by the book das consultorias, dos relatórios, dos lugares conhecidos por serem referência, vai estar todo mundo fazendo a mesma coisa.
É sobre viver normalmente. Viver a sua vida. Vai pros lugares que você gosta. Vai para aquilo que te chama a atenção. Eu me lembro que uma vez eu estava orientando um assistente e aí ele me entregou um benchmark. Eu olhei e falei: “tá bem feito, mas não tá analisado. Você é uma analista.” Ele sentiu o golpe. Eu continuei: “não tem nada de errado, mas não tem você. Isso que você me entregou qualquer pessoa vai até a internet, pega essas informações e me dá uma compilação. Mas qual é o teu olhar sobre isso aqui? O que que você pensa a respeito dessas informações que você coletou? Por que você acha que elas são importantes para o problema da empresa que eu te apontei? É exatamente isso que você precisa fazer.”
O que coloca a tua individualidade no trabalho é o teu olhar sobre aquilo que você tá falando. É a sua interpretação de mundo sobre aquele problema. Então, pra se ter isso, só tem um jeito: que você seja uma pessoa que se conheça cada vez mais. Que você seja uma pessoa com um repertório individual rico.
Então, não sei se adianta eu dar uma dica de referências. Porque, vai, talvez eu chegue a conclusão que a resposta dessa pergunta é: seja cada vez mais você, e aporte essa individualidade, esse olhar pra sua individualidade. Porque eu acho que é isso que vai fazer com que as pessoas procurem você, e não qualquer outro consultor, pra determinados trabalhos.
É isso que vai te dar, pra além de uma capacitação profissional, uma persona profissional.
A gente não fala tanto sobre arquétipo de marca? A gente não fala sobre o sábio, o amante, o cara comum, o bobo? Eu cheguei a essa conclusão não tem muito tempo: cada um precisa entender o seu arquétipo profissional também. Quanto melhor você conhecer o seu perfil, os assuntos e temas que te atraem, quem você é no mundo, melhor você consegue direcionar a sua carreira pra ir em busca de fazer com excelência coisas nas quais você efetivamente tem algo a aportar.
Tudo bem, a polivalência é um valor. Isso não significa você ficar estagnado só fazendo aquilo que você gosta porque ainda assim é trabalho. Isso não significa que você não vá fazer coisas que sejam diferentes do seu normal. Mas veja, se um outro planejador fosse fazer exatamente esse trabalho de Claybom que eu mencionei, talvez ele não traria a preocupação social. O olhar dele sobre aquilo seria diferente porque a vivência dele seria diferente. Só teve esse olhar porque era uma pessoa (e não vou dizer que só eu poderia ter feito isso, claro que não!) que já carregava e já era atravessada por esse pensamento.
Como começou esse movimento da publicidade regenerativa? Por que você começou a levantar essa bandeira?
Carla: Em 2021, eu fui convidada pelo Grupo de Planejamento pra dar uma aula/palestra. Eles têm lá esse pilar de formação. E me chamaram pra falar sobre o que eu quisesse, tema livre. E eu falei: “wow! O desafio do papel em branco”. Depois de pensar bastante, eu cheguei à conclusão de que pra falar de técnica, de como montar uma análise de comunicação, como fazer um comms planning, como, sei lá, fazer um briefing criativo, haveria pessoas melhores do que eu pra falar sobre isso. E também já tem um vasto material sobre isso na internet.
Eu fui olhar pra mim. O que eu poderia agregar, que não vinha sendo falado até então?
Desde que eu fui pra São Paulo, em 2012, eu fui me envolvendo com o ativismo dentro da publicidade. Eu estava lá no momento certo e na hora certa, na hora que as coisas estavam começando a ebulir: a nova primavera feminista de 2013, o crescimento da cobrança pela falta de diversidade dentro das agências. Num primeiro momento, a diversidade de gênero sendo questionada, a presença das mulheres, em quais hierarquias e tudo mais. Num segundo momento, a diversidade étnica, a questão dos negros no Brasil, das regionalidades, as questões etárias.
Durante todo esse meu envolvimento com esses ativismos, eu acho que estava em voga num primeiro momento muito essa questão da representação. Como a gente representa a mulher na comunicação? Como a gente representa o negro na comunicação? Como a gente coloca mais pessoas na comunicação, pessoas mais diversas nas mensagens publicitárias? Mas muito rapidamente a discussão começou a ser sobre representatividade também.
Qual o percentual de mulheres dentro das agências? Elas estão em que cargos hierárquicos? Igualmente para os negros, para os PCDs, para as pessoas de 45, 50, 55 anos? Essas questões todas foram se desdobrando. A questão do assédio moral, a questão do assédio sexual, e veio uma enxurrada de questões.
Quando eu volto pro Rio, em 2018, e começo a me envolver com essa área de reputação, ESG e sustentabilidade, eu começo a entender que o que eu vinha fazendo até então estava dentro de um guarda-chuva mais amplo. Cheguei à conclusão de que eu já tinha tido contato com uma série de movimentos regenerativos, já tinha lido sobre economia regenerativa, capitalismo regenerativo, agricultura regenerativa, do Ernst Götsch, que faz parte ali de um grande movimento, e a arquitetura regenerativa.
Eu parei pra pensar, “caramba, a nossa profissão precisa se regenerar também”. E quando a gente pega pesquisas internacionais sobre quais são os profissionais com menos credibilidade no mundo, executivos de agências de publicidade aparecem em terceiro lugar, abaixo de políticos e juízes. A gente costurou, a gente pavimentou, a gente fez por onde pra perder a credibilidade das pessoas.
E aí eu tive um insight. Eu pensei: “bom, acho que a gente precisa regenerar a publicidade, de dentro para fora.” Não é só sobre uma regeneração e responsabilidade sobre as mensagens que a gente coloca no mundo. Porque, como diz uma amiga muito amada, a Ana Cortat, que é uma musa do planejamento, uma das grandes precursoras dessa disciplina aqui no Brasil, a comunicação deixa pegadas na cultura. E isso é impacto. Então, qual é o impacto que a gente quer deixar? É um impacto positivo, social? Ou é um impacto negativo? Quando eu deixo na sociedade uma mensagem que objetifica a mulher, se eu permito que um out of home com uma mulher em trajes sumários, numa propaganda com um texto duvidoso vá pra rua, eu tenho uma pegada ali. Não só o cliente, mas a publicidade também. Eu reforço um estereótipo, eu reforço uma violência.
Então, eu sugeri ao Grupo de Planejamento fazer uma fala sobre publicidade regenerativa.
E o susto foi imediato, porque o meu amigo falou: “Mas o que é isso? Eu nunca ouvi falar.” Eu falei: “exatamente, que bom, ninguém está falando sobre isso, então é justamente sobre isso que eu preciso falar!!!” Foi um exercício muito autoral, mas eu não vou ter nenhuma pretensão de ineditismo ou genialidade. Porque eu acho que, primeiro, não é. É apenas um olhar sensível sobre o mundo e pelos meus atravessamentos. É uma colheita de uma série de vivências que me levaram a esse olhar. Então, quando eu estou falando sobre publicidade regenerativa, eu estou envelopando esses movimentos e essas causas, essas lutas que começaram lá atrás a frutificar e que, nesse momento, estão absolutamente ameaçadas.
A gente está vendo um retrocesso agora muito grande nas pautas identitárias no mundo da publicidade. Mas eu também estou adicionando, Flora, uma camada que está sendo muitíssimo pouco falada aqui no Brasil, mas que já está em debate na Europa, que é o uso dos insumos:
Quais são as tintas que eu estou usando? Quais são os papéis que eu estou usando? O meu busdoor, o meu ponto de ônibus, ele pode ser uma estação de recarga solar? Como esse pirulito da loja de rua pode ter um papel sustentável? É um olhar sobre materiais, é um olhar sobre as pessoas, é um olhar sobre as mensagens.
E aí, a piada que eu sempre uso, é da publicidade deixar de ser um Chico Xavier, que não se coloca com nenhuma responsabilidade ética ou moral sobre aquilo que está "psicografando” no mundo: se for uma campanha de um cliente consciente, a publicidade toma mil cuidados e, em caso contrário, cuidado nenhum. Como pode ser assim?
A gente precisa se implicar com relação a tudo que a gente deixa no mundo, de resíduo, de mensagem, de governança ou até de desgovernança.
Hoje dentro das agências você não tem governança. Você não tem nenhum apreço por leis trabalhistas. Então, se a gente está falando de Gig economy do entregadores…o cara da publicidade está ganhando 20, 30 vezes mais, mas é apenas uma Gig economy bem remunerada. Porque ele não tem direitos e garantias, hora extra, é muitas vezes assediado, não tem qualidade de vida, tem danos de saúde mental imensos. Em todos os momentos em que a economia dá uma escorregadinha, a publicidade imediatamente sofre porque ela é um dos primeiros cortes das empresas.
Então, a publicidade regenerativa é um olhar bem amplo que eu não considero utópico. É um olhar sistêmico sobre o processo de transformação que a gente precisa fazer no nosso ofício. As pessoas demonizam a publicidade, mas ela é muito necessária pra uma série de processos da sociedade. A publicidade ela não é nem boa e nem ruim por si. Ela vai ser aquilo que a gente fizer dela.
A minha proposta e intenção é construir (eu não sei se eu chamo de movimento ou se eu chamo de linha de pensamento) um pensamento que comece a disseminar e a provocar as pessoas a refletirem e até colaborarem nessa construção do que pode vir a ser essa publicidade regenerativa. Uma publicidade que se comprometa com uma sociedade de hiperconsumo, uma sociedade que se comprometa com a geração absurda de resíduos, uma sociedade que se comprometa a não estimular comportamentos que sejam exatamente os que estão destruindo o nosso planeta.
E como fazer com que essa nossa tarefa, essa nossa função/ofício, não pereça. Porque é muito fácil alguém dizer “mas aí, se eu não fizer essa campanha, eu não pago o salário dos meus profissionais.” Mas talvez você não faça uma campanha porque esse negócio não deveria existir, mas você poderia ganhar dinheiro fazendo campanhas de outros negócios que ainda estão emergindo.
Pra dar um exemplo muito recente, eu fiz uma postagem dura questionando uma campanha da Shell. Porque, claramente, era uma campanha que favorecia um discurso de washing. E aí, muito possivelmente, alguém diria: “mas a agência não tem que se meter nisso”. E eu tenho uma visão hoje muito diferente disso. Acredito que sim, a agência precisa se meter nisso e dizer: “não é esse o tipo de informação que eu quero colocar no mundo. Me dê a informação certa. Se você realmente é uma empresa comprometida com transição energética, me dê os fatos e dados que comprovem isso.”
Que movimentos e atividades você indica pra quem quer se aproximar desse mundo da publicidade regenerativa?
Carla: Uma aluna (dou aula na Miami Ad School) recentemente me perguntou: “o que eu leio pra saber mais disso?”
Eu falei: “eu, quando eu escrever meu livro! Haahah”. É doido dizer isso, parece muito presunçoso. Mas é porque eu realmente fui atrás e eu não achei (ainda) nada sobre o assunto. Eu fui atrás em outros idiomas e achei só matérias, todas na Europa. Mas editorial, jornalismo, reportagens. Estados Unidos não achei nada, Brasil não achei nada em termos de publicação.
Aí me deu um susto. Sabe quando te dá um medo? Tipo: “acho que eu encostei em alguma coisa que realmente pode ser autoral” e me deu um frio na barriga. Estou sendo muito honesta, me deu um frio na barriga, me deu muito medo. Porque agora que eu comecei a falar sobre isso, as pessoas até me cobram.
Mas, respondendo a pergunta, é ler o que tem perifericamente a esse assunto. É ler sobre regeneração, sobre sustentabilidade. É ler sobre novas economias, que são os assuntos correlatos. Porque foi assim que eu cheguei a esse: “peraí, mas o que a gente tem a ver com isso?” Expandir essa biblioteca sobre regeneração e sustentabilidade. Porque tem muita gente, muito legal, muito aprofundada já nesses outros campos, sabe?
{aprendizados}
2- Aprendizados a partir da entrevista com a Carla
1- Comunicação sem fronteiras e departamentos
A importância de trabalhar a publicidade em parceria com outras frentes de comunicação, como relações públicas, conteúdo, entretenimento. Ou seja, tirar fronteiras entre os departamentos pra entregar uma boa estratégia.
2- A importância de olhar o todo
Ao fazer uma estratégia de comunicação, não olhar só pro insight criativo, mas também pra todos outros elementos, como a distribuição daquela mensagem, e em que canais ela será veiculada.
3- O 5º pilar do planejamento - transformação
O planejamento estratégico é composto por quatro pilares conhecidos: cliente/marca, competição, contexto, consumidor. Carla traz um quinto pilar, que é o potencial de transformação. Sobre extrair o potencial transformador da estratégia a partir de um olhar pro contexto cultural e pro consumidor.
4- A publicidade também precisa se regenerar
Assim como o movimento da regeneração tá acontecendo em outras áreas, a publicidade também precisa se regenerar, de dentro pra fora: olhando de forma sistêmica pro processo de transformação da profissão. Um olhar pras mensagens que colocamos no mundo, pra representatividade e pro impacto social e ambiental, por exemplo.
{anti-case e reflexão}
3- O viral e a ética no marketing da The North Face
É bem provável que você tenha se deparado com uma ação da The North Face em que eles entregam uma jaqueta na montanha pra uma consumidora insatisfeita com a impermeabilidade do produto depois de pegar chuva e neve. A ação tá nesse link aqui.
Enquanto muitos acreditaram que foi uma ação real time, entregando pra ela um novo casaco enquanto ela estava lá, a verdade é que houve toda uma produção que mandou a menina pra montanha novamente e filmaram a entrega de uma nova jaqueta. O tal do Stunt Marketing.
A partir dessa história, trago algumas questões que não se restringem apenas à The North Face, mas à cultura do marketing em si:
1- Viralizar acima da verdade
O vídeo acaba se tornando enganoso, pois faz parecer que a entrega é na hora, sendo que não é. Viralizar acima de tudo acaba sendo uma premissa dos últimos tempos, mesmo que seja a partir de uma história criada. O que parece é uma tentativa de aproveitar a onda do stunt marketing da Stanley - com a diferença que nessa última foi tudo orgânico e real.
2- Contradição - uma marca outdoor que preza pela natureza
Se são uma marca de aparatos e vestuários pra esportes na natureza e valorizam o ambiente natural, criar uma ação com alto gasto de carbono - com uso de helicóptero pra ida heroica até as montanhas - parece um pouco contraditório, não?
3- Produto que não atende expectativa e necessidades do consumidor - tende a cair em desuso e virar lixo
Se o produto não atendeu à necessidade que prometeu - ser 100% à prova d’água - deveria refletir sobre sua produção e tecnologia - e não apenas entregar o mesmo produto novamente apenas pra gerar buzz e melhorar a reputação da marca.
O PR tá em dia, falta agora melhorar produto, valores e propósito.
{o case do ano}
4- O que a Mattel aprendeu com o marketing da Barbie
Nessa matéria no The Drum, Lisa McKnight, VP executiva e diretora de marca da Mattel, fala dos aprendizados e como o sucesso de Barbie transcendeu vendas de brinquedos e bilheteria, e como a estratégia de marketing da empresa mudou depois do filme.
Aqui alguns aprendizados que eles tiveram depois do resultado com Barbie:
Fãs, não consumidores: priorização do engajamento com fãs, não só consumidores, via redes sociais e parcerias, com o objetivo de ampliar o vínculo da marca.
Entertainment first: ampliação da estratégia de filmes pra mais marcas, incentivando colaborações criativas e explorando novos formatos de narrativa.
Conforto no desconforto: estímulo à ousadia na publicidade, usando mensagens provocativas pra gerar diálogos e atrair uma comunidade criativa.
Ideias além dos produtos: enxergar marcas como conceitos, não só produtos, moldando percepções e oferecendo soluções pro público.
Mercados adultos: aproveitar o potencial de crescimento entre adultos, expandindo produtos e eventos, diversificando além do mercado tradicional de brinquedos.
{tendências}
5- TrendWatching trends 2024
Os relatórios de tendência do próximo ano já chegaram com tudo, mas o TrendWatching sempre tem um lugar cativo aqui.
Atentos às questões do tempo e às demandas planetárias, há alguns anos que eles têm uma sessão de conteúdo especial chamada MakeShift - com foco em transição da economia, propósito e impacto.
Então o legal é que esse viés de regeneração tá sempre embutido na percepção de movimentos da indústria e comportamentos emergentes.
Aqui o relatório 2024 Trend Check.
{nova comunicação}
6- Vozes30 - e quem tá mudando a indústria da comunicação
Iniciativa do coletivo Papel & Caneta, que há 8 anos reune líderes focados em transformar a forma com a publicidade opera, que é normalmente à base de muita competição.
O projeto Vozes30 destaca 30 pessoas que lutaram pra mudar a indústria da comunicação em 2023 com projetos e iniciativas reais pra despertar uma mudança coletiva.
{inspiração}
7- Filme “Kiss the Ground” - “Solo Fértil”
Pra entender um pouco mais de regeneração e como o solo da Terra pode ser fundamental no combate às mudanças climáticas e a preservação planetária, recomendo muito esse documentário.
Ficamos por aqui. Daqui a quinze dias estamos de volta - em janeiro de 2024 (!)
Um novo ano com muita colheita de frutos e plantio de novos resultados.
Obrigada por estar aqui nessas 5 edições.
Me conta: o que achou dessa? Pode me responder por esse email.
Eu também tô no Linkedin também com outros conteúdos semanais, me acompanha por lá.